quinta-feira, 24 de março de 2016

GENI E O ZEPELIN - DA OBRA DE CHICO BUARQUE DE HOLANDA







Nenhuma “bondade” irá redimir Geni: objeto não aceitável, excluído, sujo e inútil aos olhos podres e moralistas da cidade.









Incrível a capacidade de mestres como Chico Buarque de   Holanda de conseguirem colocar em suas letras críticas tão explícitas ou subjacentes e, ainda assim, passarem suas mensagens, ainda que em plena época de ditadura militar. 

Chico, que já vem com suas raízes da bossa, de uma MPB regada ao samba, consegue com excelência fazer suas críticas através dos diversos personagens que cria e personifica e nos faz perceber o quão mesquinha é nossa sociedade e o quão corrompidos somos individualmente.









Contando com a participação de diversos artistas, a Ópera do Malandro é um álbum de Chico lançado em 79. O disco traz músicas do musical homônimo, de autoria de Chico Buarque, baseado na Ópera dos Mendigos, de 1728, de John Gay, e na Ópera dos Três Vinténs, de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O musical estreou na cidade do Rio de Janeiro, em julho de 78 e foi recriado na cidade de São Paulo, em outubro de 79, ambos sob a direção de Luiz Antônio Martinês Corrêa.

O filme Ópera do Malandro estreou em 86, sob direção de Ruy Guerra, baseado neste mesmo  musical de Chico Buarque. A trilha sonora do filme foi lançada também em 86.










"Geni e o Zepelim" é uma canção brasileira, composta e cantada por Chico Buarque de Holanda. Esta canção fez parte do musical Ópera do Malandro, do mesmo autor, lançado em 1978, do álbum, de 1979, e do filme, de 1986, todos com o mesmo nome.











A letra descreve, em versos heptassílabos metrificados e rimados, a longa história que define o episódio ocorrido com Geni, uma travesti (segundo representado na "Ópera do Malandro"), que era hostilizado pela cidade. Diante de uma ameaça de ataque de um comandante tirano e seu Zepelim, a cidade se vê acuada, paralisada de medo, porém uma saída resta, pois o comandante cruel se encanta com os dotes de Geni, que acaba sendo procurada desesperadamente pelos habitantes daquela cidade. Provisoriamente, ela se vê , surpreendentemente, tratada de um modo diferenciado pelos seus detratores habituais. Contudo, passada a ameaça,  ela retorna ao seu dia-a-dia normal, no qual as pessoas a ofendiam e excluíam, revelando o caráter pseudo-moralista e hipócrita da sociedade.








A canção teve tal relevância que o refrão "Joga pedra na Geni" se transformou numa espécie de bordão, bem ao gosto dos preconceituosos, indicando como Geni pessoas ou até mesmo conceitos que, em determinadas circunstâncias políticas, se tornam alvo de preconceito, execração pública, ainda que de forma transitória ou volátil.











Geni e o Zepelim (Chico Buarque)


Significado do nome Geni: 

Grego - Diminutivo de Eugênia. Bem nascido, nobre. Com uma auto-confiança que beira a arrogância não costuma decepcionar os amigos. Muito disciplinado, sua aparência transmite sucesso e prestígio que vêm graças ao grande espírito de competição e capacidade de liderança. Adora desafios!





O texto, baseado na Ópera dos Mendigos de John Gay (de 1918) e na Ópera dos Três Vinténs, de Bertold Brecht e Kurt Weill (de 1928), é adaptado, transportado e ambientado num bordel e retrata a malandragem brasileira, em espetáculo musical.

Algumas fontes indicam que a personagem Geni teria sido inspirada na personagem de mesmo nome da peça Toda Nudez Será Castigada, de Nelson Rodrigues, lançada em 1965.

A canção é uma alegoria, uma crítica ao colonialismo (ou imperialismo), ao sistema ditatorial, ao militarismo e ao capitalismo, sendo a personagem Geni uma representação do oprimido.






Geni, por um lado, é marcada pelo silêncio, pela submissão e pela não-voz, na medida em que o sistema que a cerceia impede que ela fale. Por outro lado, esse sujeito fala através de uma outra voz, a voz autoral do narrador que heroifica sua personagem e derruba os valores de seus inquisidores.

No trecho que diz que Geni preferia amar com os bichos a se deitar com homem tão "nobre", cheirando a brilho  e a cobre (do dinheiro, das armas, das insígnias), há uma clara crítica ao capitalismo, que é o mote da ópera.






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Nesta composição, Chico também se baseia no conto Bola de Sebo, de Guy de Maupassant, que da mesma forma fala de uma prostituta. Há na letra uma crítica ao capitalismo, ao imperialismo, ao militarismo e à religião opressora. 








Na época em que foi lançada a canção, interpretações equivocadas (e mais literais), contrárias ao que o Chico pretendia discursar, levaram pessoas preconceituosas a jogarem terra em prostitutas – já que não tinham bosta, como na música. Este tipo de atitude corrobora a tese de  que a sociedade, como na letra da canção, é mesquinha e hipócrita.






No programa Canal Livre, em 1980, o compositor lamentou esse fato ocorrido, dizendo que "o artista está sujeito a ser mal interpretado, mas que não deve submeter o processo criativo ao temor de ser mal entendido". Ele ainda disse que as pessoas gostam de artistas por motivos alheios ao próprio artista, que são mais das pessoas do que dos artistas.












GENI, A MARIA MADALENA DE CHICO BUARQUE: 

ACLAMAÇÕES E APEDREJAMENTOS NA CANÇÃO E NO MUNDO, ONTEM E HOJE



A construção estética da canção revela a discriminação hipócrita da sociedade, que clama e aclama Geni ao precisar de seus serviços ou, sem estar em suas mãos, a apedreja. 
Da mesma maneira, as vozes sociais representadas pelas figuras do comandante, do prefeito, do bispo, do banqueiro e da cidade praticam coerção sobre Geni. 




 
Civil sendo espancado por militares durante os Anos de Chumbo no Brasil




Crítica à hipocrisia e ao poder, Geni e o Zepelim reinou nos conhecidos “anos de ferro”, em plena ditadura militar no Brasil. Todas as rádios tocavam e a população cantava em coro os refrões da canção, nem sempre com a compreensão adequada da unidade estética crítica da mesma, uma vez que a crítica se revela ao considerar toda a narrativa da canção e não apenas o refrão, que parece acusar a sua protagonista,Geni, uma travesti que, na verdade, é a heroína injustiçada do enredo. É o refrão que revela o preconceito e a hipocrisia de toda a cidade com a heroína prostituída, apedrejada como Maria Madalena.







Pode ser que por "parecer" ir ao encontro da ideologia hegemônica discriminatória e falso moralista predominante no período militar (mas não só) que a canção tenha sido aceita e passado pelo crivo da censura da época, mesmo indo contra a essa ideologia.





















 



Uma análise mais hábil da letra da canção revelará sua complexidade e os equívocos sobre ela cometidos até hoje. 


A primeira questão a ser considerada é a do gênero, embora Geni pertença, biologicamente, ao gênero masculino, a sua orientação, identificação de gênero e aparência residem na expressão discursiva feminina: todos os elementos discursivos que a ela se referem encontram-se marcados pelo feminino (ela, donzela, namorada, rainha, menina, na, feita, boa, maldita, “aquela formosa dama”, “essa dama”,coitada, singela, dela, bendita e, inclusive, o seu nome próprio). 












Não há marca linguística que prove, pela letra da canção apenas, que Geni é um travesti (no sentido de um homem “travestido” de mulher) – o que é completamente compreensível se considerarmos o contexto de escrita da canção, bem como a concepção de feminino/masculino de maneira mais complexa. Acreditamos que a opção de apagamento dessa importante marca na letra da canção tenha ocorrido para driblar a censura e também para tratar a heroína com respeito à sua orientação e identidade de gênero: uma mulher, como outras, ainda que “diferente” (no sentido de especial, dado o seu poder na canção – é ela a escolhida: “logo ela”, pelo comandante da canção). Talvez, se houvesse marcas, a crítica não passaria despercebida – até hoje há quem pense que Geni é uma prostituta. Claro que essa indeterminação vem bem a calhar artisticamente, pois também deixa no mesmo plano prostitutas, travestis, homossexuais e “tudo que é nego torto”.









O que nos leva à asserção de que Geni é uma travesti é a obra em que a canção se encontra: na Ópera do Malandro. 

Na peça pode-se confirmar que Geni é um travesti e, assim como outras mulheres, vive num bordel barato, frequentado por “tudo que é nego torto / Do mangue e do cais do porto”: “O seu corpo é dos errantes / Dos cegos, dos retirantes / É de quem não tem mais nada”. 






Além disso, ela não pertence como objeto ao bordel onde trabalha e frequenta. Ela é dona de seu próprio nariz e vive e faz de seu corpo o que quer, com quem e como quer. 

Afinal, na descrição que segue sua apresentação, na primeira estrofe da canção temos: 

“Dá-se assim desde menina / Na garagem, na cantina / Atrás do tanque, no mato / É a rainha dos detentos / Das loucas, dos lazarentos / Dos moleques do internato / E também vai amiúde / Com os velhinhos sem saúde / E as viúvas sem porvir”. 






      
 Letícia Sabatella interpretando Geni e o Zepelim




Não há, pela descrição feita, preconceito com gênero e faixa etária, mas há uma escolha implícita: ela se identifica e se relaciona com os excluídos sociais, por ser um deles. Tanto é que, ao ser escolhida pelo comandante, a primeira reação é dizer NÃO, porque “prefere amar com os bichos” do que ter que se submeter a um tirano ditador. Há mais asco em fazer sexo com um capitão do que com um "bicho". 







Em sua apresentação, o narrador revela o “segredo” de Geni (“e isso era segredo dela”) : ela “também tinha seus caprichos” – o lexema “caprichos”, usado com ironia, revela o pensamento nonsense da cidade, uma vez que os “caprichos” se referem à escolha de se dar a quem, quando, como e onde quiser, enfim, de ser dona de seu próprio corpo e vontade. 







Essa apresentação que parece valorar negativamente a “escória” social se inverte com a presença do comandante, da cidade (como se os sujeitos citados acima não pertencessem à mesma cidade), do prefeito, do bispo e do banqueiro. 

Há uma diferença entre Geni e as prostitutas que vai além da anatomia: Geni “dá-se”  e  não “vende-se”.







O discurso excludente e moralista que assola o pensamento hegemônico da sociedade contemporânea foi se constituindo e se estabilizando ao longo dos séculos e incidem seus ecos nos discursos valorativos sobre Geni, a heroína travesti da canção de Chico Buarque. 

Sobre ela recai toda a sorte de espúrias de uma sociedade hipócrita, egoísta, machista e individualista que, respectivamente, apedreja (“Joga pedra”, “Maldita”), aclama quando convém, sempre em decorrência de seus interesses (“Bendita”) e volta a apedrejar Geni,  (de maneira mais violenta que antes, pois aparentemente contente com o desfecho, graças à salvação realizada por Geni – mas, isso não é considerado – a cidade a ataca de forma ainda mais grotesca: “Joga bosta”, “Maldita”) . 







Diferente de outras canções, do próprio Chico e de outros tantos compositores, essa canção, mesmo ao utilizar o lexema “bosta”, não foi censurada quando lançada. Por quê? 

Há a hipótese de que a Censura não tenha considerado o elemeanto crítico que compõe tal palavra: a ironia que permeia toda a letra da canção. E que as palavras tenham sido lidas de maneira literal: como se a canção, de fato, fosse ao encontro do discurso moralista vigente quando, na verdade, criticava-o. 

Prova disto é que, assim como os militares, muitos não entenderam a mensagem de Chico Buarque e passaram a usar o refrão para discriminar prostitutas, homossexuais ou qualquer pessoa que não se enquadrasse nas normas sociais da época. 




A ironia aparece no discurso da canção por meio da inversão valorativa ocorrida de acordo com os interesses da cidade que, “em romaria”, clama ajuda à Geni, cidade essa que é representada por seus poderes maiores: o comandante, o prefeito, o bispo e o banqueiro, que possuem suas vozes reificadas pelo coro, marcado pelo refrão, que simboliza a voz da cidade. 

Todas essas vozes aparecem em diálogo e são orquestradas pelo narrador: Geni, o comandante (e seu “zepelim gigante”), o prefeito, o bispo, o banqueiro e a cidade.







 


É na palavra, no signo ideológico, que se dá o embate de valores e se percebe toda sutileza de transformação, de transmutação e transgressão dos sujeitos e da vida social.







O embate ideológico entre os sujeitos narrados em “Geni e o Zepelim” é apresentado pelas vozes orquestradas pelo narrador do texto. 

A voz de Geni, pelo que vimos desde sua apresentação (na primeira estrofe da canção), reflete e ecoa as vozes daqueles que se encontram à margem da sociedade.

Já os discursos do prefeito, do bispo e do banqueiro (na quarta estrofe) representam os discursos de algumas das esferas de atividade (os poderes político, religioso e econômico figurativizados pelos sujeitos citados - prefeito, bispo e banqueiro – , respectivamente) que, de um lado, comandam os vieses normativos do discurso oficial vigente e, de outro, são dominados pelo poder do comandante, símbolo do Estado (o poder militar – soberano e inquestionável nos anos 70, mas relativizado por meio da ironia da canção que o coloca à mercê das vontades de um travesti, a Geni). 






Por fim, o discurso da cidade, em coro e romaria, reflete e refrata a voz hegemônica dos três poderes citados. Em outras palavras, de maneira estética, o diálogo entre os sujeitos se estrutura, de maneira hierárquica (ainda que essa hierarquia seja invertida via ironia existente e predominante no discurso verbal da canção). Esse diálogo ocorre pela representação das vozes sociais simbolizadas pelos sujeitos narrados e essas relações revelam e refratam valores ideológicos e poder.






A letra da canção de Chico se estrutura da seguinte maneira: 

1 - Na primeira estrofe, o narrador apresenta Geni; 

2 - Na segunda, ele narra a chegada súbita (“Um dia surgiu”) do comandante (com seu “zepelim gigante”). Sua chegada quebra a rotina da cidade que “joga pedra na Geni”; 

3 - Na terceira, o comandante coloca a sua condição (deitar-se com Geni) para não acabar com a cidade; 

4 - Na quarta, há a recusa de Geni e a aclamação da cidade e seus representantes de esferas de poderes distintas (prefeito, bispo e banqueiro) para que Geni “salve” a cidade. Aqui, de “maldita”, Geni passa a ser “Bendita” pelas vozes do coro, por interesse hipócrita da sociedade em perigo; 

5 - Na quinta, Geni (como historicamente ocorre com as prostitutas) “dominou seu asco” ao aceitar sua função de “salvadora” da cidade e, contra sua vontade, entregar-se ao comandante “como quem dá-se ao carrasco”. Saciado, o comandante cumpre o combinado e parte da cidade “com seu zepelim prateado”. Geni, acabada depois do abuso, “se virou de lado / e tentou até sorrir / Mas logo raiou o dia / E a cidade em cantoria / Não deixou ela dormir”. Realizado o desejo de toda a cidade, que não mais vê “utilidade” em Geni, tudo volta ao que era antes, em tom comemorativo (a “romaria” passa a ser “cantoria”), mas excludente, injusto e não agradecido da mesma maneira, pois a cidade volta a apedrejar Geni, de maneira grotesca (“Joga bosta na Geni”).





Essa estrutura mostra uma aparente mudança na voz da cidade. Mudança hipócrita e interesseira bem marcada pelos três refrões existentes na canção, que carregam traços de mudança: no primeiro, ela é apedrejada, pois “Maldita”; no segundo, aclamada como salvadora e redentora; no terceiro, Geni não apenas volta a ser apedrejada, como é grotescamente tratada. 





A presença do lexema “bosta” no ato de apedrejamento denota a total desconsideração, banalização, exclusão e abuso da cidade com a heroína. Talvez, tanto quanto, ou mais, que o comandante, em um outro nível, a cidade abusa da heroína, colocada como “a serviço de todos”, como objeto – útil e/ou inútil, dependendo dos interesses sócio (cidade), político (prefeito), religioso (bispo) e econômico (banqueiro). 


Se, com esse percurso da narrativa "parece" que o discurso verbal da canção concorda com o coro da cidade, numa leitura um pouco mais atenta, mais hábil, percebemos o quanto ele, na verdade, descorda, criticando esse coro, essa sociedade, esse poder, ao deflagrar suas ações e sua podridão.





Na narração de caracterização de Geni, o narrador apresenta duas vozes valoradas de maneiras distintas. 

Se, conforme o narrador, Geni “É de quem não tem mais nada”, ela também é, ironicamente, caracterizada, logo na primeira estrofe, como “um poço de bondade”. 

Esse traço da “bondade” de Geni  é a causa de como a cidade a vê e trata, na concepção do narrador (“E é por isso que a cidade / Vive sempre a repetir”).




Nesse momento, aparece o coro da cidade que, no refrão, expressa sua voz (e valor) sobre Geni na narração: 

“Joga pedra na Geni / Joga pedra na Geni / Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir / Ela dá pra qualquer um / Maldita Geni”. 

A condenação/apedrejamento de Geni aparece, desde o início, como rotina, como voz da cidade, em coro, sua imagem sobre Geni como excluída e também como aquela que cede. 

Esse é o seu grande problema, pois ela cede aos clamores dessa mesma cidade que a apedreja (prefeito, bispo e banqueiro) para “servir” ao comandante, mesmo contra a sua vontade.








O comandante, representante do poder militar, é ironicamente caracterizado: ao mesmo tempo que parece soberano, com sua aparição sobre a cidade em perspectiva superior (visto de cima para baixo) e caracterizado por seu poder ditatorial (ditar significa comandar pelo dizer, pelo discurso e é isso o que ele faz: ameaça a cidade com seu dizer – e também com seu poder bélico/fálico: seus canhões apontados para a cidade), ele é um frágil prisioneiro de Geni (uma travesti-prostituta). 

“O guerreiro tão vistoso / Tão temido e poderoso / Era dela, prisioneiro.”






Esse último traço, na perspectiva da sociedade, não apenas relativiza o poder do comandante como o desqualifica e humilha. Como outros episódios da história, o destino de uma dada sociedade se encontra nas mãos de uma prostituta. Aqui, não uma prostituta qualquer, mas uma travesti. 

Quem é que tem poder, o comandante que manda na cidade ou quem manda no comandante? 




Indiretamente, não é à Geni que a cidade, o prefeito, o bispo e o banqueiro aclamam, mas ao poder transitório que ela detém. 

A escolha do comandante por ela lhe dá poder momentâneo e ela domina a todos. De novo, por sua “bondade” (irônica e passível de análise mais profunda), ela aceita ser usada e cede aos pedidos de todos, submetida à coerção social que sempre foi.

Acrítica  ao poder militar fálico passa completamente despercebida no momento em que a canção é composta (1977/1978), pois o poder do comandante encontra-se ironicamente atrelado a seus elementos fálicos: “Um enorme zepelim” (zepelim que, todos sabemos, refere-se a um balão, mas, aqui na canção faz, também, alusão clara ao órgão sexual masculino do comandante (seu instinto primitivo, básico, sexual) que é maior que ele, que o domina  – seu desejo é maior que seu poder e o escraviza, no caso, a Geni. 






Também é sua volúpia o que conta. O abuso de seu poder atrelado às suas vontades pessoais), “Abriu dois mil orifícios / Com dois mil canhões assim”, “zepelim gigante”, “zepelim prateado”. A ironia ocorre pela caracterização do sujeito narrado. Essa caracterização é feita, pelo narrador, por meio de adjetivos que reproduzem ideias do senso comum, mas com valores invertidos. Isso é possível, claro, por se tratar de um discurso estético.





Na arquitetônica da canção aqui analisada, as várias críticas são construídas pela ironia explícita, quase que cínica, no discuro verbal da canção. 

A ironia é o elemento que aporta a crítica e a transporta, aliada à figurativização, ao reino do estético. Isso ocorre desde o título da canção: “Geni e o zepelim”. 


O poder fálico do comandante e de Geni, figurativizados. 


O poder de uma sociedade machista que objetifica as pessoas, valorando-as por sua utilidade e poder. E os poderes das mais diversas esferas à mercê do poder (fálico) de Geni e sua “bondade” – ainda que momentaneamente. Todavia, a ironia permeia toda a canção. As designações utilizadas pelo narrador referentes ao comandante – poder militar (“guerreiro tão vistoso / tão temido e poderoso”, “homem tão nobre / Tão cheirando a brilho e a cobre”), à cidade (“Foram tantos os pedidos / Tão sinceros, tão sentidos”), ao prefeito – poder político (“de joelhos”), ao bispo –poder religioso (“de olhos vermelhos”), ao banqueiro – poder econômico (“com um milhão”) e mesmo a Geni (“poço de bondade”, “donzela”, “Tão coitada e tão singela” – atentemos para o lexema “coitada” referente ao coito) são outros exemplos do quanto a canção, por meio da ironia, relativiza verdades.







Com a ironia explícita, o narrador humilha os poderes hegemônicos e critica a hipocrisia dos mesmos, invertendo a hierarquia social momentaneamente. É ela (a ironia) que deflagra os sujeitos, inverte o poder e instaura a crítica no discurso verbal da canção. Ela é fruto da voz reinante do narrador, que orquestra a cena de acordo com seu ponto de vista. 






Mesmo com a crítica realizada, a canção se distancia do “final feliz” exatamente porque, mesmo sendo uma composição estética, finca-se na realidade de que tudo volta ao que era antes de maneira mais intensa e piorada, pois sequer gratidão ou silêncio (respeitador ou desdenhoso) pelo ato generoso de Geni existe. 





Basta o comandante se fartar (“ele fez tanta sujeira / lambuzou-se a noite inteira / até ficar saciado”) e partir “numa nuvem fria” para que todos voltem a apedrejar Geni, sem sequer dar-lhe qualquer momento de descanso. A crítica, severa, culmina no final (ápice no desfecho) da canção: mais que jogar “pedra”, a cidade, agora, “Joga bosta na Geni”. Por quê? 

Porque reina o poder atroz e interesseiro do utilitarismo.



E Geni, “Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir”. 

Nenhuma “bondade” irá redimir Geni de sua função de objeto não aceitável, excluído, sujo e inútil aos olhos podres e moralistas da cidade. 

Sem zepelim, sem poder, sem voz, sem nada. Quase um não-sujeito. Como Maria Madalena, ainda que com a função de Cristo “salvador”, “redentor”, mas só quando convém.


























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