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“Quanto vale ou é por quilo?” é um filme
dirigido pelo paranaense Sérgio Bianchi. O filme tem a intenção de demonstrar, num paralelo entre o ontem e o hoje, o passado histórico sempre presente no tecido que compõe a sociedade brasileira. Fundado no
escravismo, o Brasil é alimentado por uma desigualdade abissal que determinou
um modo de ser do nosso país. O filme já busca chocar desde o princípio, a começar título – “Quanto vale ou é por quilo?” – que dá a ideia de um comércio de
produtos de pouco valor, comprado num amontoado de coisas ordinárias, de objetos subutilizados, adquiridos em brechó; de “coisas” de pouca monta; de descartabilidade e
coisificação dos escravos, dos pobres, do brasileiro comum.
Uma analogia entre o antigo
comércio de escravos e a atual exploração da miséria pelo marketing social, que
forma uma solidariedade de fachada. No século XVII um capitão-do-mato captura uma
escrava fugitiva que está grávida. Após entregá-la ao seu dono e receber sua
recompensa, a escrava aborta o filho que espera. Nos dias atuais uma ONG
implanta o projeto Informática na Periferia em uma comunidade carente. Arminda,
que trabalha no projeto, descobre que os computadores comprados foram
superfaturados e, por causa disto, precisa agora ser eliminada. Candinho, um
jovem desempregado cuja esposa está grávida, torna-se matador de aluguel para
conseguir dinheiro para sobreviver, assim como os antigos capitães-do-mato.
O filme possui uma
base crítica, fortemente vinculada a um discurso de protesto. Os escravos ainda
estão aí na figura de meninos de rua, dos catadores de papel. A alforria não se
deu de forma plena. Ela é um engodo dos poderosos a fim de fazer entender que
se vive numa sociedade livre, democrática. No chamado Estado
Democrático de Direito, uma espécie de figura jurídica que premia apenas os
fortes. Como nesta frase-protesto proferido pelo personagem de Lázaro Ramos: “O
que vale é ter liberdade para consumir, essa é a verdadeira funcionalidade da
democracia”. Ou nesta outra: “Consumidores de classe “AA” sempre
imprimiram os seus modelos para as demais classes. Hoje a classe média também
tem sede de ter "princípios". Daí esse surto de ações sociais”.
Há ainda uma
crítica ácida à indústria complexa das compensações: a miséria ou a prisão como
economicamente rentáveis e geradoras de emprego, a solidariedade como empresa
ou até mesmo a denúncia como um negócio. A sujeira nas licitações públicas. As
alianças do Estado com a iniciativa privada. O “jorro” das verbas dos
trabalhadores que alimentam a pesada máquina estatal. Responsabilidade social
ou solidariedade são exaltadas e mobilizadas como marketing dessa
nova indústria que gerencia a miséria e os miseráveis. Como nos programas sensacionalistas de domingo que exploram a pobreza e a miséria humana ou nas campanhas
televisas, com o claro objetivo de arrecadar fundos para entidades que se
afirmam como protetoras de menores abandonados; ou ainda, campanhas
sensacionalistas vinculadas pela mídia a fim de arrecadar alimentos e dinheiro. Tudo isso apenas
promove aquele que faz, onde o retorno certo é o lucro exorbitante.
FILME INSPIRADO NO CONTO DE MACHADO DE ASSIS
O filme é inspirado na
adaptação livre do conto “Pai Contra Mãe” de Machado de Assis.
As cenas
iniciais reproduzem fielmente as palavras do grande romancista carioca do século XIX:
“A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras
instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo
ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a
máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos
escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para
respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber.
perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que
eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a
sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social
e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os
funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos
de máscaras”.
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