quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

A ARTE DE ENGANAR E DO AUTOENGANO - "MARGUERITE" É O RETRATO MELANCÓLICO DE UMA CANTORA NONSENSE









Inspirado na história real da socialite americana Florence Foster Jenkins









Paris, 1920. Marguerite Dumont é uma mulher rica, amante da música e da ópera. Ela gosta de cantar para seus amigos, embora não seja uma boa cantora. Tanto o marido quantos os amigos mantiveram sua fantasia. O problema começa quando ela decide executar sua fantasia na frente de um público mais amplo.



















Quando o filme começa, somos transportados para os anos de 1920, precisamente em uma mansão, onde está sendo realizado um evento de caridade e todos estão ansiosos para a apresentação musical da Condessa Marguerite Dumont (Catherine Frot). Marguerite surge glamorosa e ao abrir a boca começa, sem nenhuma piedade, a massacrar todos os ouvidos alheios com uma performance impressionantemente horrível de "A Rainha da Noite" de Mozart. Porém, ao final da apresentação, todos a aplaudem hipocritamente e, assim, deixam nela a crença de que é uma cantora soprano sensacional. 










Essa ilusão, na verdade, já vem se mantendo há muito tempo, afinal, além de realizar muitos eventos beneficentes, Marguerite Dumont é casada com o Conde Georges Dumont (André Marcon) e a riqueza do casal já garante o prestígio necessário para a sociedade. Ao encararem, estupefatos, as destrezas vocais da Sra. Dumont, dois jornalistas, Kyril Von Priest (Aubert Fenoy) e Lucien Beaumont (Sylvain Dieuaide), pretendem, maliciosamente, alimentar ainda mais a fantasia de Marguerite a ponto de fazê-la ter o desejo de realizar um concerto solo em um grande teatro ao público.






























Nos anos 1920, a rica Marguerite Dumont (Catherine Frot) está convencida de que tem uma belíssima voz, e organiza vários concertos privados em sua mansão. Ela é muito apreciada pela generosidade e pelas belas festas que promove, mas ninguém tem coragem de dizer que Marguerite canta incrivelmente mal. Um dia, a artista decide se apresentar em público. O marido teme a reação negativa, mas ela contrata um professor e se prepara para a apresentação de sua vida.







Todos a adoram e elogiam suas apresentações, por não terem coragem de dizer o óbvio: ela é uma péssima cantora, que desafina a cada nota! Por educação, por submissão ao título de baronesa e para não perderem o convívio com a alta nata da sociedade, os amigos se calam e aguentam os sons atrozes emitidos pela anfitriã. Marguerite, sorridente, acredita que canta muito bem.




Marguerite Dumont (Catherine Frot) e o diretor e roteirista Xavier Giannoli








Dirigido por Xavier Giannoli a partir de um roteiro dele e de Marcia Romano –  Marguerite é protagonizado por Catherine Frot (“Os Sabores do Palácio”), cuja interpretação brilhante lhe rendeu o César, principal prêmio francês, de melhor atriz. O filme é sobre Marguerite Dumont, baronesa da década de 20 que reúne inúmeros amigos e a nata da sociedade francesa da região. Seus recitais são sempre pelos órfãos da guerra. Ela recebe muitos convidados e doações, mas quando canta sua voz desafinada não é contestada tornando seu canto constrangedor e irritante. O silêncio conivente e constrangedor da plateia está intimamente ligado ao poder socioeconômico de Marguerite.














“Marguerite” é um filme sobre o poder da elite e o silêncio hipócrita, coletivo, capazes de levar à ascensão regimes fascistas e a Segunda Guerra. A metáfora embutida na voz desafinada significa que se pode desafinar os tons e fazer do canto destorcido um instrumento destrutível e caótico quando se está no poder. Assim também são os caminhos da sociedade fascista que nos faz obedecer, aplaudir e calar diante do abominável. 








Em um dos recitais o jovem jornalista, Lucien Beaumont (Sylvain Dieuaide), com o amigo Kyrill Von Priest (Aubert Fenoy), se espantam com a falta de talento da mulher, mas também com a completa hipocrisia da alta sociedade que a aplaude. Ninguém tem coragem de contar à Marguerite a verdade, sua falta de talento, com medo de magoá-la e, principalmente, abrir mão do desfrute de sua riqueza. 









O contraponto é uma jovem cantora talentosa, de verdade, (Christa Théret), que também se apresenta nesse recital e cuja carreira está em ascensão. 



Um jornalista interesseiro e jocoso (o excelente Sylvain Dieuaide) tece elogios à baronesa, na intenção de frequentar as festas na mansão. Enquanto isso, a jovem Hazel (Christa Théret), de origem humilde e realmente talentosa, passa longe dos radares por não servir aos interesses de ninguém.


As diferenças de classe e relações de poder são determinantes na produção artística, em outras palavras, cada sociedade colhe a arte que plantou. No caso dos nobres hipócritas dessa história, eles merecem os gritos ensurdecedores da protagonista.








Marguerite, fechada em si mesma, é protegida pelo marido envergonhado (André Marcon), que depende de seu dinheiro, e pelo seu fiel mordomo (Denis Mpunga). 



Sem dúvida é o início de seu delírio e de sua loucura. A personagem vai do cômico ao teatro trágico, por não perceber, ou não querer perceber, a realidade hipócrita e pesada que a cerca por interesses materiais e a aprisionam na sua ilusão de ser uma grande cantora. 








Marguerite é uma mulher ingênua, fora da realidade e por vezes, pouco inteligente. Lucien, o jornalista, com um perfil no jornal intitulado “A Voz dos Órfãos”, poderia escancarar a verdade, mas prefere hipocritamente elogiá-la. Marguerite é incapaz de perceber o deboche dos jornais.  Aliás, ela não leva a sério o que dizem os jornais, e muitas críticas são escondidas pelo fiel mordomo. 


Ela vai para o grupo avant guarde de Lucien, que a rigor quer apenas explorar sua rica cantora. 







Marguerite chega a contratar um professor que também é falso e mentiroso, deixando que ela se apresente no teatro sem nenhum preparo para um fiasco. Sua voz simboliza o grito dos inocentes e um aviso que os fascistas vencerão. Ela é quase uma flor surda, uma doçura não vista, abandonada e rejeitada dentro de seu castelo, ela precisa ser escutada, ser amada pelo marido que também está a favor dos nazistas e  a rejeita brutalmente, apesar de sentir compaixão, esta brota da culpa por ter uma amante. 








Marguerite simboliza a pessoa que é apagada, menosprezada e ridicularizada no silêncio do tempo. 

Quem tem coragem de contrariar uma milionária dentro de sua excentricidade? 

O poder fala mais alto e todos se dobram à sua loucura. 

É nisso que reside o mais trágico de “Marguerite”, não apenas a percepção do filme diante da Europa do entre guerras, mas das dinâmicas sociais de classe. Ou seja, uma vez rico e poderoso ninguém jamais vai lhe apontar seus defeitos e fraquezas. É um comportamento social sádico e perverso que mata aos poucos uma pessoa mimada em função do seu dinheiro e ocupação social,   desafinada e que nunca ouviu a si própria no seu delírio solitário.










Como pode se perceber, esta obra constitui uma fábula rica em significados. Giannoli consegue embutir vários níveis de leitura, tornando a obra fascinante. 



Um dos primeiros aspectos presentes é, portanto, a vertente política: Marguerite traça uma crônica mordaz aos costumes da burguesia francesa no início do século XX. Para quem pensa que a protagonista será ridicularizada por sua ingenuidade, a surpresa é constatar um olhar muito mais crítico àqueles que sustentam esta ilusão. O mundo das aparências afeta todos os níveis hierárquicos, incluindo o marido da personagem, seus amigos próximos, os jornalistas que se aproveitam de sua riqueza, o motorista zeloso, as empregadas, o professor, a jovem cantora sem sucesso, etc.







O filme também impressiona por suas escolhas estéticas. O diretor evita o deboche e prefere o retrato grotesco, obscuro, beirando o suspense psicológico. A fotografia cinzenta e os espaços vazios da casa transparecem uma atmosfera de desolação. 


A montagem nunca termina as cenas nos momentos que a cantora possa parecer patética: seguindo a fórmula “drama = comédia + tempo”, deixa as cenas se esticarem após os momentos do canto, trocando a humilhação pela sensação de desconforto. 









A direção de arte, precisa, também acerta ao passar do realismo à loucura, com imagens belíssimas e criativas – vide as fotografias do mordomo e o olho gigantesco no jardim. Marguerite está sempre a um passo do surrealismo.



Outro mérito do filme é seu humanismo. O roteiro compreende o lado de todos os personagens, sem julgá-los, já que estão mergulhados numa perversa estrutura social: é compreensível que jornalistas pobres obtenham ajuda da protagonista, faz sentido que o professor de canto, em fim de carreira, aceite treinar a péssima aluna sem apontar sua falta de talento. 







Cada um se alimenta das carências alheias, numa ciranda de personagens hipócritas, obrigados a cumprir com obrigações sociais indesejadas. Catherine Frot ajuda muito na empreitada: a atriz genial transita entre vários sentimentos através de pouquíssimos gestos, da fala contida e do olhar preciso. É difícil saber exatamente o que se passa na cabeça da personagem, até que ponto ela acredita na farsa de seu talento. A atriz desenvolve muito bem esta ambiguidade indispensável à narrativa.




Catherine Frot) e o diretor e roteirista Xavier Giannoli











Rumo ao final, o aguardado instante da apresentação é excelente, assim como a conclusão, tão triste quanto irônica. Esta acaba sendo a história de uma grande artista sem talento, uma figura importante não pela contribuição à música, mas por seu papel como sintoma de uma época.





















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