Cultura é toda forma de intervenção humana na natureza transmitida de geração a geração, nas diferentes sociedades; Criação exclusiva dos seres humanos; Ela é múltipla e variável no tempo e no espaço, de sociedade para sociedade. Este blog pretende dividir um pouco da cultura engendrada pelo homem de todas as épocas e lugares, de todas as áreas do conhecimento humano, especialmente das artes, ciências e filosofia.
Filipe Catto continua na divulgação do seu mais recente disco, e nos últimos dias foi a vez de mostrar ao público a grande essência
visual da faixa "Dias e Noites", que abre Tomada, seu novo CD.
O vídeo da faixa Dias e Noites faz um interessante jogo de luzes e sombras,
mostrando que nosso próprio rosto pode ser visto de diversas formas, dependendo
apenas da incidência de luz.
Produzido pela Zeppelin Filmes e com direção de Fernanda
Rotta e Rodrigo Pesavento, o clipe de Dias e Noites comprova a personalidade
forte de Filipe, um dos mais recentes destaques da ainda nova música popular
brasileira.
Fotografia de Lena Leote
Catto se destaca pela sua voz única, um timbre raro de se ouvir. O artista vem alavancando sua carreira para o grande público de forma cuidadosa, qualitativa e meteórica.
A combinação de voz, trejeitos e a jovem beleza do
cantor contrastam ainda com uma dúbia aura doce e a cara de imponência. É como
se imaginássemos aquele chefe que dá sermão falando baixo e sorrindo. O vídeo de Dias e Noites mostra este paradoxo que
cada vez mais se mostra uma marca registrada do artista. Catto é doce, simples e até tímido, porém nos palcos é o oposto
disso: firme, sisudo, imponente mesmo.
Diferentes e iguais
No clipe, o artista aparece cantando seu single enquanto as
luzes passeiam pelo seu rosto, mostrando que, de certo modo, podemos ser bem
diferente daquilo que imaginam(os). À medida que o vídeo avança, o rosto de
Filipe ganha sobreposições de novos rostos.
Esta mescla de rostos, por outro lado, prova que mesmo sendo
diferentes, somos ainda o mesmo, a mesma essência, um mesmo ser. E não se
assuste, Filipe Catto nos dá toda a licença poética necessária para
interpretações poéticas de suas músicas e clipes.
Dias e noites, claro e escuro, diferentes e iguais, tímido e
imponente. O que seria de nós se não fossem as dualidades cotidianas presentes
em nossas vidas?
Nenhuma “bondade” irá redimir Geni: objeto não aceitável,
excluído, sujo e inútil aos olhos podres e moralistas da cidade.
Incrível a capacidade de mestres como Chico Buarque de Holanda de conseguirem colocar em suas letras críticas tão explícitas ou subjacentes e, ainda assim, passarem suas mensagens, ainda que em plena época de ditadura militar. Chico, que já vem com suas raízes da bossa, de uma MPB regada ao
samba, consegue com excelência fazer suas críticas através dos diversos
personagens que cria e personifica e nos faz
perceber o quão mesquinha é nossa sociedade e o quão corrompidos somos
individualmente.
Contando com a participação de diversos artistas, a Ópera do
Malandro é um álbum de Chico lançado em 79. O disco traz músicas do musical
homônimo, de autoria de Chico Buarque, baseado na Ópera dos Mendigos, de 1728,
de John Gay, e na Ópera dos Três Vinténs, de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O
musical estreou na cidade do Rio de Janeiro, em julho de 78 e foi recriado na
cidade de São Paulo, em outubro de 79, ambos sob a direção de Luiz Antônio
Martinês Corrêa.
O filme Ópera do Malandro estreou em 86, sob direção de Ruy
Guerra, baseado neste mesmo musical de
Chico Buarque. A trilha sonora do filme foi lançada também em 86.
"Geni e o Zepelim" é uma canção brasileira,
composta e cantada por Chico Buarque de Holanda. Esta canção fez parte do
musical Ópera do Malandro, do mesmo autor, lançado em 1978, do álbum, de 1979,
e do filme, de 1986, todos com o mesmo nome.
A letra descreve, em versos heptassílabos metrificados e
rimados, a longa história que define o episódio ocorrido com Geni, uma travesti
(segundo representado na "Ópera do Malandro"), que era hostilizado pela
cidade. Diante de uma ameaça de ataque de um comandante tirano e seu Zepelim, a
cidade se vê acuada, paralisada de medo, porém uma saída resta, pois o
comandante cruel se encanta com os dotes de Geni, que acaba sendo procurada
desesperadamente pelos habitantes daquela cidade. Provisoriamente, ela se vê , surpreendentemente, tratada
de um modo diferenciado pelos seus detratores habituais. Contudo, passada a
ameaça, ela retorna ao seu dia-a-dia
normal, no qual as pessoas a ofendiam e excluíam, revelando o caráter
pseudo-moralista e hipócrita da sociedade.
A canção teve tal relevância que o refrão "Joga pedra na Geni" se transformou numa espécie de bordão, bem ao gosto dos preconceituosos, indicando como Geni pessoas ou até mesmo
conceitos que, em determinadas circunstâncias políticas, se tornam alvo de preconceito, execração pública, ainda que de forma transitória ou volátil.
Geni e o Zepelim (Chico Buarque)
Significado do nome Geni:
Grego - Diminutivo de Eugênia. Bem
nascido, nobre. Com uma auto-confiança que beira a arrogância não costuma
decepcionar os amigos. Muito disciplinado, sua aparência transmite sucesso e
prestígio que vêm graças ao grande espírito de competição e capacidade de
liderança. Adora desafios!
O texto, baseado na Ópera dos Mendigos de John Gay (de 1918)
e na Ópera dos Três Vinténs, de Bertold Brecht e Kurt Weill (de 1928), é adaptado, transportado e ambientado num bordel e retrata a malandragem brasileira, em espetáculo
musical.
Algumas fontes indicam que a personagem Geni teria sido
inspirada na personagem de mesmo nome da peça Toda Nudez Será Castigada, de Nelson Rodrigues,
lançada em 1965.
A canção é uma alegoria, uma crítica ao
colonialismo (ou imperialismo), ao sistema ditatorial, ao militarismo e ao capitalismo, sendo a personagem Geni uma
representação do oprimido.
Geni, por um lado, é marcada pelo silêncio, pela submissão e
pela não-voz, na medida em que o sistema que a cerceia impede que ela fale. Por
outro lado, esse sujeito fala através de uma outra voz, a voz autoral do narrador que
heroifica sua personagem e derruba os valores de seus inquisidores.
No trecho que diz que Geni preferia amar com os bichos a se
deitar com homem tão "nobre", cheirando a brilho e a cobre (do dinheiro, das armas, das insígnias), há uma clara crítica
ao capitalismo, que é o mote da ópera.
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Nesta composição, Chico também se baseia no conto Bola de Sebo, de Guy de Maupassant, que da mesma forma fala de uma prostituta. Há na letra uma crítica ao capitalismo, ao imperialismo, ao militarismo e à religião opressora.
Na época em que foi lançada a canção, interpretações equivocadas (e mais literais), contrárias ao que o Chico pretendia discursar, levaram pessoas preconceituosas a jogarem terra em prostitutas – já que não tinham bosta, como na música. Este tipo de atitude corrobora a tese de que a sociedade, como na letra da canção, é mesquinha e hipócrita.
No programa Canal Livre, em 1980, o compositor lamentou esse fato ocorrido, dizendo que "o artista está sujeito a ser mal interpretado, mas que não deve submeter o processo criativo ao temor de ser mal entendido". Ele ainda disse que as pessoas gostam de artistas por motivos alheios ao próprio artista, que são mais das pessoas do que dos artistas.
GENI, A MARIA MADALENA DE CHICO BUARQUE:
ACLAMAÇÕES E APEDREJAMENTOS NA CANÇÃO E NO MUNDO, ONTEM E HOJE
A construção estética da canção revela a discriminação
hipócrita da sociedade, que clama e aclama Geni ao precisar de seus serviços
ou, sem estar em suas mãos, a apedreja.
Da mesma maneira, as vozes sociais
representadas pelas figuras do comandante, do prefeito, do bispo, do banqueiro
e da cidade praticam coerção sobre Geni.
Civil sendo espancado por militares durante os Anos de Chumbo no Brasil
Crítica à hipocrisia
e ao poder, Geni e o Zepelim reinou nos conhecidos “anos de ferro”, em plena ditadura
militar no Brasil. Todas as rádios tocavam e a população cantava em coro os
refrões da canção, nem sempre com a compreensão adequada da unidade estética crítica da
mesma, uma vez que a crítica se revela ao considerar toda a narrativa da canção
e não apenas o refrão, que parece acusar a sua protagonista,Geni, uma travesti
que, na verdade, é a heroína injustiçada do enredo. É o refrão que revela o preconceito
e a hipocrisia de toda a cidade com a heroína prostituída, apedrejada como
Maria Madalena.
Pode ser que por "parecer" ir ao encontro da ideologia hegemônica
discriminatória e falso moralista predominante no período militar (mas não só)
que a canção tenha sido aceita e passado pelo crivo da censura da época, mesmo
indo contra a essa ideologia.
Uma análise mais hábil da letra da canção revelará sua complexidade e os equívocos sobre ela cometidos até hoje.
Aprimeira questão a ser considerada é a do gênero, embora Geni pertença, biologicamente, ao gênero masculino, a
sua orientação, identificação de gênero e aparência residem na expressão
discursiva feminina: todos os elementos discursivos que a ela se referem
encontram-se marcados pelo feminino (ela, donzela, namorada, rainha, menina,
na, feita, boa, maldita, “aquela formosa dama”, “essa dama”,coitada, singela,
dela, bendita e, inclusive, o seu nome próprio).
Não há marca linguística que
prove, pela letra da canção apenas, que Geni é um travesti (no sentido de um homem
“travestido” de mulher) – o que é completamente compreensível se considerarmos
o contexto de escrita da canção, bem como a concepção de feminino/masculino de
maneira mais complexa. Acreditamos que a opção de apagamento dessa importante
marca na letra da canção tenha ocorrido para driblar a censura e também para
tratar a heroína com respeito à sua orientação e identidade de gênero: uma
mulher, como outras, ainda que “diferente” (no sentido de especial, dado o seu
poder na canção – é ela a escolhida: “logo ela”, pelo comandante da canção). Talvez, se houvesse marcas, a crítica não passaria despercebida – até hoje há
quem pense que Geni é uma prostituta. Claro que essa indeterminação vem bem a calhar artisticamente, pois também deixa
no mesmo plano prostitutas, travestis, homossexuais e “tudo que é nego torto”.
O que nos leva à asserção de que Geni é uma travesti é a obra em que a canção se encontra: na Ópera do Malandro. Na peça pode-se confirmar que Geni é um travesti e, assim como outras mulheres, vive num
bordel barato, frequentado por “tudo que é nego torto / Do mangue e do cais do
porto”: “O seu corpo é dos errantes / Dos cegos, dos retirantes / É de quem não
tem mais nada”.
Além disso, ela não pertence como objeto ao bordel onde
trabalha e frequenta. Ela é dona de seu próprio nariz e vive e faz de seu corpo
o que quer, com quem e como quer. Afinal, na descrição que segue sua
apresentação, na primeira estrofe da
canção temos: “Dá-se assim desde menina / Na garagem, na cantina / Atrás do tanque,
no mato / É a rainha dos detentos / Das loucas, dos lazarentos / Dos moleques do internato / E também vai amiúde
/ Com os velhinhos sem saúde / E as viúvas sem porvir”.
Letícia Sabatella interpretando Geni e o Zepelim
Não há, pela descrição feita, preconceito
com gênero e faixa etária, mas há uma escolha implícita: ela se identifica e se
relaciona com os excluídos sociais, por ser um deles. Tanto é que, ao ser
escolhida pelo comandante, a primeira reação é dizer NÃO, porque “prefere amar
com os bichos” do que ter que se submeter a um tirano ditador. Há mais asco em fazer sexo com um capitão do que com um "bicho".
Em sua apresentação, o
narrador revela o “segredo” de Geni (“e isso era segredo dela”) : ela “também tinha
seus caprichos” – o lexema “caprichos”, usado com ironia, revela o pensamento
nonsense da cidade, uma vez que os “caprichos” se referem à escolha de se dar a
quem, quando, como e onde quiser, enfim, de ser dona de seu próprio corpo e
vontade.
Essa apresentação que parece valorar negativamente a “escória” social
se inverte com a presença do comandante, da cidade (como se os sujeitos citados
acima não pertencessem à mesma cidade), do prefeito, do bispo e do banqueiro. Há uma
diferença entre Geni e as prostitutas que vai além da anatomia: Geni “dá-se” e não “vende-se”.
O discurso excludente e moralista que assola o pensamento
hegemônico da sociedade contemporânea foi se constituindo e se estabilizando ao
longo dos séculos e incidem seus ecos nos discursos valorativos sobre Geni, a
heroína travesti da canção de Chico Buarque. Sobre ela recai toda a sorte de
espúrias de uma sociedade hipócrita, egoísta, machista e individualista que,
respectivamente, apedreja (“Joga pedra”, “Maldita”), aclama quando convém, sempre em decorrência de seus interesses (“Bendita”) e volta
a apedrejar Geni, (de maneira mais violenta que antes, pois aparentemente contente
com o desfecho, graças à salvação realizada por Geni – mas, isso não é
considerado – a cidade a ataca de forma ainda mais grotesca: “Joga bosta”, “Maldita”) .
Diferente de outras canções, do
próprio Chico e de outros tantos compositores, essa canção, mesmo ao utilizar o
lexema “bosta”, não foi censurada quando lançada. Por quê? Há a hipótese de
que a Censura não tenha considerado o elemeanto crítico que compõe tal palavra: a ironia
que permeia toda a letra da canção. E que as palavras tenham sido lidas de
maneira literal: como se a canção, de fato, fosse ao encontro do discurso
moralista vigente quando, na verdade, criticava-o. Prova disto é que, assim como os militares, muitos não entenderam a mensagem de Chico Buarque e passaram a usar o refrão para discriminar prostitutas, homossexuais ou qualquer pessoa que não se enquadrasse nas normas sociais da época.
A ironia aparece no discurso da canção por meio da inversão
valorativa ocorrida de acordo com os interesses da cidade que, “em romaria”,
clama ajuda à Geni, cidade essa que é representada por seus poderes maiores: o
comandante, o prefeito, o bispo e o banqueiro, que possuem suas vozes reificadas
pelo coro, marcado pelo refrão, que simboliza a voz da cidade. Todas essas
vozes aparecem em diálogo e são orquestradas pelo narrador: Geni, o comandante (e seu “zepelim gigante”), o prefeito, o
bispo, o banqueiro e a cidade.
É na palavra, no signo ideológico, que se dá o embate de
valores e se percebe toda sutileza de transformação, de transmutação e transgressão dos sujeitos e da vida social.
O embate ideológico entre os sujeitos narrados em “Geni e o
Zepelim” é apresentado pelas vozes orquestradas pelo narrador do texto.
A voz
de Geni, pelo que vimos desde sua apresentação (na primeira estrofe da canção),
reflete e ecoa as vozes daqueles que se encontram à margem da sociedade.
Já os
discursos do prefeito, do bispo e do banqueiro (na quarta estrofe) representam
os discursos de algumas das esferas de atividade (os poderes político,
religioso e econômico figurativizados pelos sujeitos citados - prefeito, bispo
e banqueiro – , respectivamente) que, de um lado, comandam os vieses normativos
do discurso oficial vigente e, de outro, são dominados pelo poder do comandante,
símbolo do Estado (o poder militar – soberano e inquestionável nos anos 70, mas
relativizado por meio da ironia da canção que o coloca à mercê das vontades de
um travesti, a Geni).
Por fim, o
discurso da cidade, em coro e romaria, reflete e refrata a voz hegemônica dos
três poderes citados. Em outras palavras, de maneira estética, o diálogo entre
os sujeitos se estrutura, de maneira hierárquica (ainda que essa hierarquia seja invertida
via ironia existente e predominante no discurso verbal da canção). Esse diálogo
ocorre pela representação das vozes sociais simbolizadas pelos sujeitos
narrados e essas relações revelam e refratam valores ideológicos e poder.
A letra da canção de Chico se
estrutura da seguinte maneira:
1 - Na primeira estrofe, o narrador apresenta Geni;
2 - Na segunda, ele narra a chegada súbita (“Um dia surgiu”) do comandante (com seu
“zepelim gigante”). Sua chegada quebra a rotina da cidade que “joga pedra na
Geni”;
3 - Na terceira, o comandante coloca a sua condição (deitar-se com Geni)
para não acabar com a cidade;
4 - Na quarta, há a recusa de Geni e a aclamação da
cidade e seus representantes de esferas de poderes distintas (prefeito, bispo e
banqueiro) para que Geni “salve” a cidade. Aqui, de “maldita”, Geni passa a ser
“Bendita” pelas vozes do coro, por interesse hipócrita da sociedade em perigo;
5 - Na quinta, Geni (como historicamente ocorre com as prostitutas) “dominou seu
asco” ao aceitar sua função de “salvadora” da cidade e, contra sua vontade,
entregar-se ao comandante “como quem dá-se ao carrasco”. Saciado, o comandante
cumpre o combinado e parte da cidade “com seu zepelim prateado”. Geni, acabada
depois do abuso, “se virou de lado / e tentou até sorrir / Mas logo raiou o dia
/ E a cidade em cantoria / Não deixou ela dormir”. Realizado o desejo de toda a
cidade, que não mais vê “utilidade” em Geni, tudo volta ao que era antes, em
tom comemorativo (a “romaria” passa a ser “cantoria”), mas excludente, injusto
e não agradecido da mesma maneira, pois a cidade volta a apedrejar Geni, de
maneira grotesca (“Joga bosta na Geni”).
Essa estrutura mostra uma aparente mudança na voz da cidade.
Mudança hipócrita e interesseira bem marcada pelos três refrões existentes na
canção, que carregam traços de mudança: no primeiro, ela é apedrejada, pois
“Maldita”; no segundo, aclamada como salvadora e redentora; no terceiro, Geni
não apenas volta a ser apedrejada, como é grotescamente tratada.
A presença do
lexema “bosta” no ato de apedrejamento denota a total desconsideração,
banalização, exclusão e abuso da cidade com a heroína. Talvez, tanto quanto, ou
mais, que o comandante, em um outro nível, a cidade abusa da heroína, colocada
como “a serviço de todos”, como objeto – útil e/ou inútil, dependendo dos
interesses sócio (cidade), político (prefeito), religioso (bispo) e econômico (banqueiro).
Se, com esse percurso da narrativa "parece" que o discurso verbal da canção concorda com o coro
da cidade, numa leitura um pouco mais atenta, mais hábil, percebemos o quanto ele, na verdade, descorda, criticando esse coro, essa sociedade, esse poder, ao deflagrar suas ações e sua podridão.
Na narração de caracterização de Geni, o
narrador apresenta duas vozes valoradas de maneiras distintas.
Se, conforme o
narrador, Geni “É de quem não tem mais nada”, ela também é, ironicamente, caracterizada, logo na primeira estrofe, como “um poço de bondade”.
Esse traço
da “bondade” de Geni é a causa de como a
cidade a vê e trata, na concepção do narrador (“E é por isso que a cidade /
Vive sempre a repetir”).
Nesse momento, aparece o coro da cidade que, no
refrão, expressa sua voz (e valor) sobre Geni na narração:
“Joga pedra na Geni
/ Joga pedra na Geni / Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir / Ela dá
pra qualquer um / Maldita Geni”.
A condenação/apedrejamento de Geni aparece,
desde o início, como rotina, como voz da cidade, em coro, sua imagem sobre Geni
como excluída e também como aquela que cede.
Esse é o seu grande problema, pois ela cede aos clamores
dessa mesma cidade que a apedreja (prefeito, bispo e banqueiro) para
“servir” ao comandante, mesmo contra a sua vontade.
O comandante, representante do poder militar, é ironicamente
caracterizado: ao mesmo tempo que parece soberano, com sua aparição sobre a
cidade em perspectiva superior (visto de cima para baixo) e caracterizado por
seu poder ditatorial (ditar significa comandar pelo dizer, pelo discurso e é
isso o que ele faz: ameaça a cidade com seu dizer – e também com seu poder bélico/fálico: seus canhões apontados para a cidade),
ele é um frágil prisioneiro de Geni (uma travesti-prostituta).
“O guerreiro tão vistoso / Tão temido e poderoso /
Era dela, prisioneiro.”
Esse último traço, na perspectiva da sociedade, não apenas relativiza o poder do comandante como o desqualifica e humilha. Como
outros episódios da história, o destino de uma dada sociedade se encontra nas
mãos de uma prostituta. Aqui, não uma prostituta qualquer, mas uma travesti.
Quem
é que tem poder, o comandante que manda na cidade ou quem manda no comandante?
Indiretamente,
não é à Geni que a cidade, o prefeito, o bispo e o banqueiro aclamam, mas ao
poder transitório que ela detém.
A escolha do comandante por ela lhe dá poder
momentâneo e ela domina a todos. De novo, por sua “bondade” (irônica e passível
de análise mais profunda), ela aceita ser usada e cede aos pedidos de todos,
submetida à coerção social que sempre foi.
Acrítica ao poder militar fálico passa completamente
despercebida no momento em que a canção é composta (1977/1978), pois o poder do
comandante encontra-se ironicamente atrelado a seus elementos fálicos: “Um
enorme zepelim” (zepelim que, todos sabemos, refere-se a um balão, mas, aqui na
canção faz, também, alusão clara ao órgão sexual masculino do comandante (seu instinto
primitivo, básico, sexual) que é maior que ele, que o domina – seu desejo é maior que seu poder e o
escraviza, no caso, a Geni.
Também é sua volúpia o que conta. O abuso de seu
poder atrelado às suas vontades pessoais), “Abriu dois mil orifícios / Com dois
mil canhões assim”, “zepelim gigante”, “zepelim prateado”. A ironia ocorre pela
caracterização do sujeito narrado. Essa caracterização é feita, pelo
narrador, por meio de adjetivos que reproduzem ideias do senso comum, mas com
valores invertidos. Isso é possível, claro, por se tratar de um discurso
estético.
Na arquitetônica da canção aqui analisada, as várias críticas
são construídas pela ironia explícita, quase que cínica, no discuro verbal da
canção.
A ironia é o elemento que aporta a crítica e a transporta, aliada à
figurativização, ao reino do estético. Isso ocorre desde o título da canção: “Geni
e o zepelim”.
O poder fálico do comandante e de Geni, figurativizados.
O poder
de uma sociedade machista que objetifica as pessoas, valorando-as por sua
utilidade e poder. E os poderes das mais diversas esferas à mercê do poder
(fálico) de Geni e sua “bondade” – ainda que momentaneamente. Todavia, a ironia
permeia toda a canção. As designações utilizadas pelo narrador referentes ao
comandante – poder militar (“guerreiro tão vistoso / tão temido e poderoso”, “homem
tão nobre / Tão cheirando a brilho e a cobre”), à cidade (“Foram tantos os
pedidos / Tão sinceros, tão sentidos”), ao prefeito – poder político (“de
joelhos”), ao bispo –poder religioso (“de olhos vermelhos”), ao banqueiro –
poder econômico (“com um milhão”) e mesmo a Geni (“poço de bondade”, “donzela”,
“Tão coitada e tão singela” – atentemos para o lexema “coitada” referente ao coito)
são outros exemplos do quanto a canção, por meio da ironia, relativiza
verdades.
Com a ironia explícita, o narrador humilha os poderes
hegemônicos e critica a hipocrisia dos mesmos, invertendo a hierarquia social
momentaneamente. É ela (a ironia) que deflagra os sujeitos, inverte o poder e
instaura a crítica no discurso verbal da canção. Ela é fruto da voz reinante do
narrador, que orquestra a cena de acordo com seu ponto de vista.
Mesmo com a
crítica realizada, a canção se distancia do “final feliz” exatamente porque,
mesmo sendo uma composição estética, finca-se na realidade de que tudo volta ao
que era antes de maneira mais intensa e piorada, pois sequer gratidão ou
silêncio (respeitador ou desdenhoso) pelo ato generoso de Geni existe.
Basta o comandante
se fartar (“ele fez tanta sujeira / lambuzou-se a noite inteira / até ficar
saciado”) e partir “numa nuvem fria” para que todos voltem a apedrejar Geni,
sem sequer dar-lhe qualquer momento de descanso. A crítica, severa, culmina no
final (ápice no desfecho) da canção: mais que jogar “pedra”, a cidade, agora,
“Joga bosta na Geni”. Por quê?
Porque reina o poder atroz e interesseiro do utilitarismo.
E Geni, “Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir”.
Nenhuma “bondade” irá redimir
Geni de sua função de objeto não aceitável, excluído, sujo e inútil aos olhos
podres e moralistas da cidade.
Sem zepelim, sem poder, sem voz, sem nada. Quase
um não-sujeito. Como Maria Madalena, ainda que com a função de Cristo
“salvador”, “redentor”, mas só quando convém.