É que Narciso acha feio o que não é espelho.
Caetano Veloso
No mito, a história de
Narciso começa marcada pelo excesso. Sua beleza desmedida, fora do comum,
coloca-o em perigo uma vez que, segundo as leis vigentes na cultura grega, a
desmesura, o exagero – o hybris, ou seja, a ultrapassagem do metron – punha
o mortal em risco perante os deuses.
Narciso estava com dezesseis anos quando, ao procurar
saciar sua sede em uma fonte, outra sede surge dentro dele. Enquanto bebe,
arrebatado pela beleza que vê em sua imagem, apaixona-se por um reflexo sem
substância: toma por corpo o que não passa de sombra. Aprisionado, tenta, em vão, beijar a água enganosa. Sua imagem refletida na fonte foge enquanto a “coisa”, ilusória de si, vai dissolvendo-se na água.
Desesperado em sua vivência, com medo de
perder-se de si, encerra-se tanto em seu desespero, em sua insatisfação, como
no imenso desinteresse pelo que o circunda. Abandona assim qualquer
possibilidade de desenvolver uma posição desejante de conhecimento de si ou do outro.
Em Psicanálise, narcisismo
representa um modo particular de relação com a sexualidade, como o processo pelo qual o sujeito assume a imagem do seu próprio corpo como sua e se identifica com ela (eu sou essa imagem).
Segundo Lewknowicz, estamos vivendo em uma cultura com características crescentemente
narcisistas; onde há um predomínio do uso da imagem de ação em vez da reflexão
para lidar com a ansiedade e um incentivo exagerado ao consumismo e ao culto ao
corpo.
Nos pacientes de funcionamento narcisista há uma exagerada
preocupação com a aparência; pequenos defeitos físicos são intensamente
valorizados. Apresentam uma necessidade exagerada de serem amados e admirados,
buscam elogios e se sentem inferiores e infelizes quando criticados ou
ignorados.
O narcisista tem pouca capacidade para
perceber os outros, levando a vida emocional superficial. Há inclusive uma
forte dificuldade de formar uma verdadeira relação terapêutica.
O fenômeno do narcisismo pode
ser visto para além da perspectiva intimista e pessoal como quando está
presente nos ideais da própria cultura contemporânea, direcionada
prioritariamente pela sociedade de consumo.
Através da indústria cultural na contemporaneidade os objetos de consumo ganham características simbólicas que induzem a identificação dos consumidores ocasionando um aprisionamento de sua força vital nestes objetos, fragilizando assim o indivíduo nas suas relações com os outros homens às custas de um inflacionamento do ego, que pautado na fantasia, aumenta o sofrimento psíquico do indivíduo contemporâneo que acredita que a felicidade reside basicamente no ato do consumo e na posse de objetos industriais.
“Mas a moda não foi somente um palco de apreciação do
espetáculo dos outros; ela desencadeou,
ao mesmo tempo, um investimento de si, uma auto-observação estética sem nenhum
precedente."
"A moda tem ligação com o prazer de ver, mas também com
o prazer de ser visto, de exibir-se ao olhar do outro. Se a moda,
evidentemente, não cria de alto a baixo o narcisismo, o reproduz de maneira
notável, faz dele uma estrutura construtiva e permanente dos narcisistas,
encorajando-os a ocupar-se mais de sua apresentação do que de sua
representação.”
Lipovetiskyela
O corpo na contemporaneidade é visto como mercadoria, objeto
de consumo e alvo de investimentos. A cultura do corpo, obcecada por ideais de
perfeição, concentra nele investimentos financeiros, simbólicos, afetivos e
assim desvia-nos de outros investimentos mais importantes, tais como educação,
cultura, formação moral e ética. Essa concentração implica em alienação, e
assim unifica todos os corpos em um único padrão. Muitas vezes o desejo de ter
um novo corpo é maior do que de ter determinada roupa ou carro.
O comportamento é um espelho
em que cada um vê a sua própria imagem.
Johann Goethe
O Narcisismo não leva apenas
à patologia, ele também é um protetor positivo do psiquismo. Um narcisismo “que
promove a constituição de uma imagem de si positiva, unificada, perfeita, cumprida e
inteira” ultrapassa o autoerotismo para fornecer a
integração de uma figura positiva e diferenciada do outro. Neste aspecto o narcisismo deixa de ser doentio e promove uma autoestima que nos permite o amor próprio e o amor ao próximo.
Freud distingue dois tipos de
narcisismo: narcisismo primário e narcisismo secundário.
A relação entre “imagem” e o
desenvolvimento do Eu, como subjetividade, sempre esteve presente nas
teorizações psicanalíticas. Lacan, seguindo Freud, propôs com a noção de
estágio do espelho um momento constitutivo, no qual se produz a partir da
identificação à imagem do outro – matriz identificante –, uma imagem unificada
de si, correspondente aos primeiros esboços do Eu.
Ao reconhecer sua “imagem”, a criança inicia uma relação especular com ela, correlata à sua relação com a mãe, cujo olhar é tal qual o próprio espelho em que se vê. Tal condição nos permite ainda pensar a questão narcísica sob o vértice do “outro” que, implicado em seu próprio narcisismo, também se vê refletido na própria imagem que projeta. Temos, portanto, neste momento inicial dois espelhos.
"O cristal nos espreita. Se entre as quatro paredes do
aposento há um espelho, não estou só. Há outro. Há o reflexo que arma na aurora
um sigiloso teatro."
Borges, 1960/2005
Mas onde se deve procurar a
liberdade é nos sentimentos. Esses é que são a essência viva da alma.
Johann Goethe
A alma é essa coisa que nos pergunta se a alma existe.
Mario Quintana
Uma alma que se sabe amada, mas que por sua vez não ama,
denuncia o seu fundo: - vem à superfície o que nela há de mais baixo.
Friedrich Nietzsche
Os espelhos são usados para ver o rosto; a arte para ver a
alma.
Você tem que ser o espelho da
mudança que está propondo. Se eu quero mudar o mundo, tenho que começar por
mim.
Mahatma Gandhi
– Narciso era belo? – indagou o lago.
– Quem sabe melhor do que vós? – responderam as Oréadas.
– Ele nos desprezava ao vos cortejar debruçado às vossas
margens, mirando-vos, e contemplando a própria beleza, no espelho de vossas
águas.
E o lago retrucou:
– Eu amava Narciso porque, quando ele se debruçava sobre as
minhas margens para contemplar-me, eu via sempre se refletir
no espelho dos seus olhos, a minha própria beleza.
Oscar Wilde, 1881
Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.
Fernando Pessoa
A deformidade do corpo não afeia uma bela alma, mas a
formosura da alma reflete-se no corpo.
Sêneca
Ó beleza! Onde está tua
verdade?
William Shakespeare
A beleza das coisas existe no espírito de quem as contempla.
David Hume
Um comentário:
Narciso. Que lindas postagens. Você é genial amigo. Amei a do retrato em que a imagem do rapaz aparece velha, feia assim como deve ser a alma dele. Porque a arte revela o que somos. Lembrei da obra de " O retrato de Dorian Gray" de Oscar Wilde, uma obra linda em que a personagem principal é Dorian um rapaz muito lindo. A beleza exterior para ele era fundamental, entrega sua alma em troca da juventude eterna, mal sabia ele que o envelhecimento faz parte da vida de todos. Envelhecer é a comprovação de que você participou, que fez diferença. Quando ele percebe o mal que causa a si mesmo, é tarde demais. Sua alma estava presa em um retrato. Ele coloca fim neste retrato colocando assim o fim em sua existência. Amei as postagens. Um beijão meu amigo lindo. Eu te adoro demais.
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